quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Lya Luft - Faxina nos mitos II


"A maioria das pessoas de classe média nametade da vida poderia correr menos e vivermais. Não viver adoidado, mas assimilandoo mundo, os afetos, a arte. Celebrandoa vida com suas mutações"
Como na coluna anterior, publicada há quinze dias, aqui não falo dos verdadeiros mitos, que preexistem e que a gente não cria, mas descobre, pois fazem parte do nosso inconsciente, emergem nos sonhos, nas análises, na busca de significados. Falo dos mitos inventados por nós mesmos, pela mídia, pela cultura, pelos que pretendem governar nossas mentes. Eles têm a ver com fantasias, preconceitos e medos, com hipocrisia.
Um deles, o mito da competência, antes aflição tipicamente masculina, hoje atormenta muitas mulheres. A chamada liberação feminina foi também assunção de um monte de responsabilidades, dilemas e trapalhadas viris. Está certo que este é um mundo altamente competitivo. É verdade que todos precisamos ganhar o pão nosso com o velho suor – ou o mais moderno stress. Mas, com o passar do tempo, uma vez que depois dos 40 anos é que as coisas e as cabeças começam a ficar interessantes, o mito da competência poderia ser substituído pelo desejo de sabedoria. Ambicionar algo mais e melhor do que prestígio e dinheiro.
Temos gravado a fogo, na testa e no peito, uma cruel tatuagem: "Eu tenho de". A gente tem de estar à frente, ainda que na fila do INSS. A gente tem de ser, como escrevi tantas vezes, belo, jovem, desejado, bom de cama (e de computador, é claro). A gente tem de aproveitar o mais que puder, explorar o outro sem piedade ou bancar o forte e ajudar meio mundo, mas não deve contar com ninguém para escutar as nossas dores. Porque nem lhe daremos chance: a gente tem de ao menos parecer onipotente.
A maioria das pessoas de classe média na metade da vida poderia correr menos e viver mais. Não viver adoidado, mas assimilando o mundo, os afetos, a arte, a beleza inventada ou natural que nos rodeia. Celebrando a vida com suas mutações.
Publiquei um livro que chamei "infantil", mas realmente é uma pequena fábula para qualquer idade. Uma metáfora: histórias de uma bruxa boa não muito irreal, com as falhas, divertimentos e sustos de uma pobre mortal. De momento escrevo um Bruxas Dois, falando das transformações que nos assustam e fazem crescer. Bruxinhas vão à escola e percebem que mudar nem sempre é perder; uma criança indaga por que não tem vovô, e lhe dizem que, como na natureza, também entre os humanos as coisas se transformam, persistindo de outras maneiras. Mesmo adultos, nunca nos livraremos inteiramente dos mitos castradores. Mas podemos melhorar, em muito, a nossa perspectiva, e afrouxar nossas algemas. Porque crescemos até morrer, embora em geral se pense que nos deterioramos. Caminhamos com os medos e incertezas soprando seu bafo em nosso calcanhar, por isso somos uns heróis no cotidiano e no transcendental.
Quando esta coluna for publicada, estarei na França falando da nossa cultura, da nossa literatura, do nosso país. Apesar dos desalentos, há muita coisa boa a dizer. Em português, é claro, ou, como dizia meu amado Erico Verissimo, "falando outros idiomas com orgulho do meu bom sotaque brasileiro". Também na alma, diga-se de passagem, porque a alma tem lá suas manias, que são o sotaque do seu contexto humano e cultural, as tradições, a coragem e as fragilidades do seu povo. A alma que aqui escreve, adoçada pelo tempo, nunca achou graça na inclinação dos pernósticos e inseguros de querer ser mais europeus do que brasileiros. Não "tenho de" aparentar mais do que isto que, com muita dificuldade, afinal consigo ser.

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